Conheça uma das histórias contadas por Rosa Artigas em
VIRGÍNIA ARTIGAS, HISTÓRIAS DE ARTE E POLÍTICA
Quando a ditadura finalmente acabou, certo dia uma moça tocou a campainha na casa de Virgínia, para dizer que os livros dos Artigas escondidos num terreiro de umbanda, em Santo Amaro, podiam ser retirados. A mãe dela havia morrido, mas deixara a moça encarregada de fazer a devolução quando as coisas melhorassem. Os livros voltaram para casa vinte anos depois do golpe militar e compõem parte do que é, hoje, o acervo dos Artigas.
Essa história começou com Virgínia sendo fiadora, talvez no Mappin, de uma sanfona comprada pelo namorado de uma faxineira que trabalhava em nossa casa. Pagas as duas primeiras prestações, o sujeito deu o fora na menina e sumiu do mapa. Além da moça inconsolável, deixou oito ou dez prestações da sanfona para Virgínia pagar. Diante da encrenca, num desabafo, ela rogou uma praga:
– Queria que esse safado fosse tocar sanfona no inferno!
Uma semana depois, o sanfoneiro morreu de infarto fulminante e Virgínia ficou com a fama de ter muito poder entre os caboclos e os santos que circulavam no bairro, entre os mais humildes. O pessoal de um terreiro, na região de Santo Amaro, ficou sabendo que, além de poderosa, Virgínia era pintora, e a procurou para fazer uma encomenda: pintar o retrato do Caboclo Quebra Galho numa bandeira de estandarte bem grande, que seria usado em algumas cerimônias do terreiro. Como modelo, levaram uma imagem do guia em gesso pintado, com cerca de 40 centímetros de altura: um índio forte e bonito, ajoelhado numa perna e quebrando, sobre a outra, não um simples galho, mas sim um tronco de madeira bem grosso.
Virgínia pintou o retrato do caboclo numa bandeira de cetim branca e acrescentou à imagem um sabor de pintura romântica, meio à la Delacroix, com um fundo de mata espessa. Ainda teve o cuidado de costurar uma franja branca na bainha e pendurar dois pingentes de cortina nas laterais, amarrados no varão do estandarte. Fez o trabalho com prazer, não cobrou nada e a bandeira ficou linda.
Em 1964, quando houve o golpe militar, sabíamos que cedo ou tarde a polícia política invadiria a casa atrás de Artigas e que, como sempre, faria a revista em busca de material “subversivo”. Virgínia preparou-se para esse dia incerto tirando da biblioteca as publicações mais comprometedoras. Muita coisa foi despejada num poço desativado no quintal da casinha e perdeu-se para sempre. Outras, que ela considerou mais importantes – livros, trabalhos dela e do Artigas, recortes de jornais, ilustrações – transportou, um pouco por vez, debaixo do tapete da perua Vemaguet, quando passou a levar os filhos à escola diariamente. Na porta do colégio, encontrava-se com alguém do terreiro, que levava o material para a mãe de santo, para ser guardado em local ignorado.
Fazia isso diante dos olhos de um falso casal, uma dupla de agentes do DOPS, que ficou durante alguns meses postado num Volkswagen azul, vigiando quem entrava e quem saía da nossa casa. Quando a polícia finalmente entrou para revistar, encontrou nas estantes somente uma literatura amena, livros de arte e uma enciclopédia britânica.
Quanto à sanfona, Virgínia pagou as prestações até o fim e conseguiu recuperá-la. Inventou de aprender a tocar músicas como Saudades do Matão e outras valsas meio caipiras, mas acabou se desfazendo do instrumento.
O material “subversivo” foi ficando no terreiro porque, primeiro, Virgínia pensou que fora destruído, e depois se esqueceu dele. Afinal, foram quase vinte anos de ditadura. Até acontecer a visita da moça de quem nunca se soube o nome.